Nevoeiro

"O" dia.

Aquele em que finalmente se esquecem as coisas por umas horas. Se atiram coisas para uma mochila: impermeável, bolachas, água, toalha, um vestido velho a espreitar do armário, máquinas fotográficas (muitas!), rolos e um caderno e caneta (porque toda a gente sabe que um caderno e caneta salvam o mundo se for preciso...). O dia em que se pegam nas chaves do jipe e se "sai". Sem um destino definido. A desculpa são as máquinas. A vontade é maior.

Saio do sol e entro no nevoeiro. Sorrio, porque nada é mais apropriado que começar uma pequena aventura tendo que avançar para perceber novo caminho, porque tudo o que está 10 metros mais à frente só se consegue ver avançando 5 metros do sítio onde se está. E porque há uma qualquer magia no nevoeiro. Se calhar ainda estamos à espera do cavalo branco.

E depois vem o perceber que "desta" vez quem dita o caminho sou eu. Mais que ditar o caminho. Quem dita quando parar. Quando simplesmente parar e ficar a olhar pela janela. Nunca o mar pareceu tão azul. Tão igual ao céu. Tão zangado, sozinho, imenso - mas tão feliz.

Parar num bocadinho de sol. Passar uma cancela aberta. Saber que não é suposto estar ali, mas que ainda assim não é errado. Porque a vista é bonita. Fotografar com uma máquina. E depois com outra. Com outra. E com outra. Só porque sim. Pensar que as fotografias significam sempre mais quando há uma pessoa. Um corpo. Um qualquer componente humano.

Vestir o vestido, tirar as meias, as calças e os ténis. Meter os pés na terra fria. Um disparo. Voltar à partida porque o vento quis ser maior que a vontade. "Sentir" alguém. Aquela sensação de quem foi apanhado a roubar o rebuçado do colega da mesa ao lado. Atirar as máquinas para dentro, atirar os ténis para o lado, sentar, chaves, arrancar, sair. Um sorriso. Porque não há nada que um sorriso não resolva. Outro. E saí do bocadinho de sol.

Conduzir descalça. Voltar a sentir um bocadinho do Verão. Mas com os pés frios. Nevoeiro. Mais e mais e mais nevoeiro. Vou por aqui. Parar e olhar. Ainda de vestido, sair. Frio. Vento. Nevoeiro. Pés molhados. Lama. Erva. Nevoeiro. Terra. E o vestido velho que espreitava do armário a sorrir. Lama e frio. Molhado. Correr. Dez segundos. Correr. Dez segundos. Liberdade. Cinco segundos. Correr. Frio. Fugir. Felicidade.

Perder uma meia. Calçar ténis sem meias. Novamente o Verão. Há quanto tempo não era Verão assim? Sentir o pé lá dentro como sempre esteve lá dentro, mas lá dentro assim - e ser Verão.

"Regressar."
Não, vou por ali. Mais nevoeiro. Civilização. Pôr-do-sol.
É um bocadinho mágico saber que fui a única pessoa no mundo inteiro que viu "aquele" pôr-do-sol. Ali, naquele sítio, o pôr-do-sol era meu.

E depois uma vaca no meio de muitas vacas. E vacas pequeninas amuadas. E um burro simpático a comer no caminho. Que gosta de Holgas, mas não lhe mostrem Minoltas!

Sair do "caminho" só para olhar para onde se cresceu. Porque há sempre qualquer coisa que nos prende ao sítio que pela primeira vez decorámos como "morada". Chegar à escola e dizer "a morada". Crescer?

Parar. Olhar e perceber que o jipe se tornou rapidamente uma pequena casa. Voltar a colocar a casa na mochila. Rolos cheios, máquinas felizes. Toalhas molhadas. Uma meia sozinha.

Voltar para casa - a outra casa - como se nunca tivesse saído.
Não, não como se nunca tivesse saído.
Voltar.







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